Disposições legais em relação à liberdade religiosa e aplicação efectiva
Os muçulmanos sunitas representam cerca de 84,7 a 89,7% da população afegã. Os restantes são maioritariamente muçulmanos xiitas (10 a 15%), na sua maioria de etnia hazara. A antiga Constituição do país reconhecia oficialmente 14 grupos étnicos, incluindo os pashtun, os tajiques e os hazaras. Os pashtun constituem o maior grupo (estimado em 42% da população), seguidos dos tajiques (cerca de 27%), dos hazaras (9%), dos usbeques (9%), dos turquemenos (3%), dos baluchis (2%). Os outros grupos constituem os restantes 8%.[1]
Os talibãs regressaram ao poder em 2021, mais de 20 anos depois de terem sido expulsos. A consequente criação de um emirado islâmico alterou completamente o quadro jurídico do país. A Constituição da República do Afeganistão de 2004[2] já não está em vigor sob o actual regime talibã. Apesar de várias declarações das autoridades de facto manifestando a sua intenção de redigir e promulgar uma nova Constituição, até à data não foi apresentado qualquer documento desse tipo.
Durante o primeiro emirado (1996-2001), um conselho ulema redigiu uma Constituição destinada a formalizar a criação de um emirado islâmico, mas esta nunca foi aprovada. A carta baseava-se em grande medida na Constituição de 1964, adoptada pelo antigo rei Mohammed Zahir Sha, que previa uma monarquia constitucional, eleições democráticas, a separação de poderes e uma declaração de direitos que limitava os poderes do Estado, todos eles rejeitados pelos talibãs.[3]
Embora os talibãs tenham declarado, em Setembro de 2021, que tencionavam aplicar temporariamente a antiga carta, na prática, não o fizeram.[4]
Apesar das promessas iniciais de inclusão, o regime talibã tornou-se cada vez mais segregador, favorecendo os membros talibãs do sul pashtun em detrimento da representação política de outros grupos. O líder supremo, Emir Haibatullah Akhundzada, consolidou e centralizou ainda mais a autoridade.[5]
Em Maio de 2022, os talibãs publicaram um manifesto de 312 páginas intitulado "Al Imarat al Islamiah wa Nizamuha" (O Emirado Islâmico e a sua Ordem).[6] Da autoria do presidente do Supremo Tribunal dos talibãs, Abdul Hakim Haqqani, baseia-se na escola Hanafi de jurisprudência islâmica, que é seguida pela maioria sunita do país. Com um claro impacto na minoria xiita, constitui um retrocesso em relação à Constituição de 2004, que foi a primeira na história do país a reconhecer um papel limitado à escola de jurisprudência xiita Jaʿfarī.[7]
Do ponto de vista judicial, os talibãs mostraram pouca ou nenhuma consideração pelo processo legal. Por exemplo, importantes nomeações e decretos nos domínios administrativo, legislativo e judicial foram emitidos sob a autoridade do líder supremo, o emir, sem ter em conta a separação de poderes. Muitas leis são estabelecidas através de decretos que não são devidamente comunicados e, nalguns casos, basta uma declaração de um líder de grupo para que um decreto se torne efectivo. Desde Agosto de 2021, os talibãs emitiram cerca de 100 éditos e decretos que restringem significativamente os direitos humanos, com um impacto particularmente grave nas mulheres e nas minorias religiosas.[8]
Um outro desafio é o facto de com frequência os funcionários locais aplicarem uma justiça rápida, por vezes sem um julgamento adequado. As penas podem variar entre a vergonha pública e os castigos corporais. E mesmo delitos relativamente menores, como o roubo, são punidos com a amputação de membros. Os casos mais graves, incluindo crimes como a apostasia e a blasfémia, podem resultar em execução. Por exemplo, em Fevereiro de 2022, uma jovem e um homem foram apedrejados até à morte por alegado adultério na província de Badakhshan, no nordeste do país, de acordo com duas fontes locais e um funcionário talibã.[9]
A pena de morte para crimes como a apostasia e a blasfémia continua em vigor, enquanto os talibãs começaram por anunciar e depois aplicar formas extremas de punição, mesmo para delitos menores, como a amputação de membros em caso de roubo.[10]
Os talibãs também procederam a uma rápida reestruturação do sistema judicial do Afeganistão. Uma das mudanças mais significativas foi a dissolução do Gabinete do Procurador-Geral em Julho de 2023, eliminando efectivamente o papel dos procuradores públicos. Como consequência, os juízes supervisionam agora todos os aspectos dos processos judiciais, desde a atribuição dos processos até à sentença, sem o apoio à investigação tradicionalmente prestado pelos procuradores.[11] A ausência de uma Constituição escrita e de códigos jurídicos formais exacerba as preocupações com interpretações arbitrárias da lei e o risco acrescido de erros judiciais.[12]
O Ministério para a Promoção da Virtude e Prevenção do Vício é a principal autoridade responsável pela emissão da maioria das directivas e funciona com aproximadamente 5.000 agentes.[13] Este ministério, que inclui um sistema de policiamento islâmico de linha dura notoriamente violento, foi dissolvido em 2001 mas restabelecido em Setembro de 2021, substituindo o Ministério dos Assuntos das Mulheres. Através das suas directivas, o novo ministério impõe disposições que considera obrigatórias para todos os afegãos, quer por serem muçulmanos quer, no caso dos não muçulmanos, por serem súbditos de um Estado muçulmano.[14]
A 8 de Novembro de 2023 foi aprovada a Lei sobre a Audição de Queixas, que define as responsabilidades do Ministério para a Promoção da Virtude e Prevenção do Vício no tratamento de queixas contra funcionários públicos. A lei determina que todas as instituições do Estado, incluindo os tribunais, devem responder aos inquéritos deste ministério. Além disso, nos casos de queixas graves ou não resolvidas, o ministério está autorizado a encaminhar o assunto directamente para a liderança talibã.[15]
Em Agosto de 2024 foi publicada uma Lei sobre a Promoção da Virtude e Prevenção do Vício, composta por um prefácio, quatro secções e 35 artigos. O n.º 1 do artigo 6.º da lei estabelece a autoridade do Ministério para a Promoção da Virtude, Proibição do Vício e Audição de Queixas.[16] O artigo 23.º estipula que: "O responsável pela aplicação da lei tem o dever de impedir que as minorias e os requerentes de asilo que vivem sob um governo islâmico cometam abertamente actos ilícitos."[17] Richard Bennett, Relator Especial da ONU para os Direitos Humanos no Afeganistão, sublinhou que, para além de impor práticas religiosas aos muçulmanos, a lei também impõe restrições à observância de religiões não islâmicas. Por exemplo, proíbe o uso de crucifixos e outros símbolos "não islâmicos" e proíbe celebrações que não tenham fundamento no Islão.[18]
O n.º 3 do artigo 13.º da Lei sobre a Promoção da Virtude e a Prevenção do Vício estipula que, além de cobrirem totalmente o corpo e o rosto, a voz da mulher "numa canção, num hino ou num recital em voz alta numa reunião" deve ser ocultada, proibindo efectivamente que as mulheres sejam vistas ou ouvidas em público.[19]
Desde Agosto de 2021, os talibãs emitiram uma série de decretos que restringem os direitos das mulheres, incluindo a sua liberdade de circulação, vestuário, participação em desportos, acesso ao emprego e à educação e cuidados de saúde.[20] Em Maio de 2022, as autoridades de facto emitiram o decreto sobre o hijab, que obriga as mulheres e as raparigas a andarem totalmente cobertas em público. Este decreto foi rigorosamente aplicado, em especial no primeiro semestre de 2024, através da intensificação das medidas de repressão e do aumento das inspecções.[21]
As mulheres têm sido excluídas da maioria dos sectores da força de trabalho,[22] enquanto outras medidas afectaram gravemente os seus direitos, visando especificamente a educação. Em Março de 2022, os talibãs decidiram que as escolas para raparigas para além do sexto ano permaneceriam encerradas. Mais tarde, em Dezembro do mesmo ano, o ministro do Ensino Superior suspendeu oficialmente o ensino universitário para as estudantes do sexo feminino até nova ordem.[23] Em Fevereiro de 2023, o Conselho Médico do Afeganistão proibiu as mulheres licenciadas de realizarem os seus exames finais. Mais recentemente, em Dezembro de 2024, o vice-ministro da Saúde Pública emitiu uma directiva verbal dando instruções a todas as instituições médicas para proibirem as mulheres e as raparigas de prosseguirem os estudos nas suas instalações.[24]
Foram também impostas restrições às práticas religiosas das mulheres. Em Abril de 2023, o Departamento para a Promoção da Virtude e Prevenção do Vício – um organismo local de aplicação da lei que actua a nível provincial e distrital sob a tutela do Ministério para a Promoção da Virtude e Prevenção do Vício – deu instruções verbais à polícia de Kandahar para proibir as mulheres de visitarem cemitérios e santuários, rotulando a prática como “anti-islâmica”.[25]
Além disso, milhares de raparigas afegãs, impedidas de frequentar o ensino formal, foram obrigadas a recorrer a escolas religiosas (madrassas) como única opção de aprendizagem. De acordo com testemunhos de estudantes do sexo feminino, o currículo destas instituições incorpora frequentemente ideologias extremistas e coloca uma ênfase significativa nos papéis domésticos, instruindo as raparigas sobre como criar os seus filhos como guerreiros sagrados (mujahidin) e sobre como "servir" os seus maridos.[26]
O Ministério da Educação dos talibãs supervisiona actualmente mais de 21.000 escolas religiosas, incluindo escolas jihadistas, quatro vezes mais do que durante o anterior Governo afegão, muito mais do que as 18.000 escolas públicas e privadas.[27] A expansão das madrassas, algumas das quais defendem activamente a jihad militante, transformou profundamente o sistema educativo do Afeganistão, suscitando preocupações quanto às implicações a longo prazo para o desenvolvimento nacional e o risco potencial de fomentar a radicalização.[28] Em vez de servirem apenas como instituições educativas, estas madrassas funcionam como centros de doutrinação e potenciais centros de recrutamento para grupos extremistas.[29]
A Missão de Assistência das Nações Unidas no Afeganistão (UNAMA) também manifestou particular preocupação com a impunidade com que as autoridades de facto do país parecem ter cometido violações dos direitos humanos. Entre 1 de Outubro e 31 de Dezembro de 2024, a UNAMA documentou casos de castigos corporais judiciais que afectaram pelo menos 194 pessoas, incluindo 150 homens, 39 mulheres, quatro rapazes e uma rapariga.[30]
No seu último relatório sobre o Afeganistão, publicado a 21 de Fevereiro de 2025, o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, sublinhou a necessidade urgente de pôr termo à aplicação de castigos corporais e manifestou a sua profunda preocupação com a continuação da aplicação da pena de morte, em especial nos casos que envolvem indivíduos com menos de 18 anos na altura dos alegados crimes.[31]
Desde a tomada do poder pelos talibãs em Agosto de 2021, pelo menos cinco pessoas foram executadas publicamente na sequência de decisões do sistema judicial de facto e com a aprovação do líder talibã.[32]
O Serviço de Direitos Humanos da UNAMA também documentou múltiplos casos de agressão física e repressão religiosa por parte do Departamento para a Promoção da Virtude e Prevenção do Vício contra indivíduos cujas crenças divergem das impostas pelas autoridades no poder.[33]
O relatório da UNAMA, intitulado "De Facto Authorities Moral Oversight in Afghanistan: Impacts on Human Rights" (Maio de 2024), inclui, em anexo, as respostas do Ministério para a Promoção da Virtude, Prevenção do Vício e Audição de Queixas do Emirado Islâmico do Afeganistão. No que diz respeito à regulamentação das práticas religiosas, as autoridades de facto afirmam que “cada ordem do sistema islâmico sharia e da política não é desprovida de sabedoria; os Muçulmanos devem cumpri-las e o regime no poder deve tomar todas as medidas necessárias para garantir o seu desempenho”.[34]
No que diz respeito à proibição de celebrações não islâmicas, o relatório argumenta que "o Islão é uma religião completa e abrangente que oferece orientações e preceitos para os seus seguidores seguirem em todas as áreas da vida. Há dois Eids [que podem ser celebrados no Islão], e é uma violação da liberdade [celebrar outros dias]; por conseguinte, podemos dizer que a celebração dos assuntos que mencionou é proibida; assim, os aspectos propostos também são proibidos, e este é um princípio jurídico aceite".[35]
Os talibãs proibiram igualmente a música, como referiu o seu porta-voz Zabihullah Mujahid, em 2021: "A música é proibida no Islão".[36] Em Janeiro de 2023, o Ministério para a Promoção da Virtude e Prevenção do Vício confirmou uma ordem que proíbe a poesia com métrica musical.[37] Mais tarde, a 11 de Junho de 2023, o ministério alargou as restrições, proibindo a música em casamentos e outras celebrações, dando instruções aos salões de casamento para imporem o seu cumprimento. A UNAMA documentou vários casos de aplicação da lei, incluindo casos de maus tratos, prisões arbitrárias e detenções de indivíduos acusados de violar a proibição da música.[38]
O panorama da comunicação social no Afeganistão também tem sido objecto de uma forte repressão, com os jornalistas a serem confrontados com detenções arbitrárias, ameaças e violência. Muitos meios de comunicação social foram forçados a encerrar ou a funcionar sob censura rigorosa, o que resultou num declínio significativo da liberdade de imprensa. O Centro de Jornalistas do Afeganistão documentou 181 violações dos direitos da comunicação social em 2024, com 18 meios de comunicação encerrados e 50 jornalistas detidos em resultado de novas restrições.[39]
Em Janeiro de 2025, o procurador-geral do Tribunal Penal Internacional (TPI), Karim Khan, solicitou mandados de captura para o líder supremo dos talibãs, Haibatullah Akhundzada, e para o presidente do Supremo Tribunal, Abdul Hakim Haqqani. São acusados de crimes contra a humanidade, nomeadamente a perseguição sistemática de mulheres e raparigas no Afeganistão.[40]
Incidentes e episódios relevantes
De acordo com os dados das Nações Unidas, dos 46 milhões de habitantes do país, mais de 22,9 milhões necessitam de assistência humanitária.[41]
Embora as vítimas civis tenham diminuído significativamente no Afeganistão desde a tomada do poder pelos talibãs a 15 de Agosto de 2021, a Missão de Assistência das Nações Unidas no Afeganistão (UNAMA) continua a documentar elevados níveis de danos a civis, principalmente resultantes de ataques deliberados envolvendo engenhos explosivos improvisados.
Entre Agosto de 2021 e Maio de 2023, a UNAMA registou 3.774 vítimas civis, incluindo 1.095 mortos e 2.679 feridos. A maioria das vítimas resultou de ataques indiscriminados em áreas movimentadas com dispositivos explosivos improvisados (2.814 vítimas: 701 mortos e 2.113 feridos), como locais de culto, escolas e mercados.[42] Entre as vítimas encontravam-se 233 mulheres (92 mortas, 141 feridas) e 866 crianças (287 mortas, 579 feridas). Outras causas importantes de danos a civis foram os resíduos explosivos de guerra (639 vítimas) e os assassínios selectivos (148 vítimas).[43]
Num relatório datado de Agosto de 2024, o Relator Especial das Nações Unidas, Richard Bennett, manifestou a sua preocupação com as violações contínuas, por parte dos talibãs, da liberdade religiosa e dos direitos culturais das minorias, citando medidas como a proibição de celebrações religiosas, a retirada de livros relacionados com o xiismo das bibliotecas e a proibição de traduzir obras científicas para usbeque e turco.[44]
Um relatório da organização afegã de defesa dos direitos humanos Rawadari põe em evidência a discriminação sistemática por parte dos talibãs contra as minorias étnicas e religiosas. A organização documentou políticas tendenciosas nos serviços governamentais, na atribuição de recursos, no emprego e na distribuição de ajuda humanitária, que afectam desproporcionadamente as comunidades étnicas e religiosas vulneráveis. Além disso, os talibãs suprimiram a diversidade religiosa, impuseram severas restrições à liberdade religiosa e, nalguns casos, coagiram as minorias religiosas a converterem-se.[45]
Os hazaras são a minoria mais perseguida, já visada durante o anterior período de domínio talibã.[46] Os hazaras, maioritariamente muçulmanos xiitas, são o terceiro maior grupo étnico do Afeganistão, a seguir aos pashtun e aos tajiques. Durante o período em análise, foram vítimas de inúmeros ataques perpetrados tanto pelos talibãs como pelo autoproclamado Estado Islâmico da Província de Khorasan (ISKP).
A comunidade xiita hazara continua a ser o principal alvo dos ataques do ISKP contra grupos minoritários. Apesar das perdas de liderança e de território, o ISKP continua a representar uma ameaça significativa no Afeganistão, explorando as divisões sectárias e visando frequentemente as minorias religiosas e outras populações vulneráveis.[47]
Em Outubro e Novembro de 2023, dois atentados visaram a minoria xiita hazara em Dasht-e-Barchi, um bairro predominantemente xiita de Cabul, com poucos dias de intervalo. O ISKP reivindicou a responsabilidade por ambos os incidentes.[48] O primeiro ataque ocorreu a 26 de Outubro de 2023, quando uma explosão num clube de boxe matou quatro pessoas.[49] No segundo ataque, a 7 de Novembro de 2023, uma bomba detonou num miniautocarro que transportava passageiros xiitas hazara, causando sete mortos e 20 feridos.[50]
Em Janeiro de 2024 ocorreram dois outros ataques no mesmo bairro.[51] A 6 de Janeiro de 2024, uma explosão atingiu um miniautocarro, matando cinco pessoas e ferindo 15. Alguns dias mais tarde, a 11 de Janeiro de 2024, um atentado com granada, no exterior de um centro comercial, causou dois mortos e 12 feridos.[52] O ISKP reivindicou a responsabilidade pelo primeiro ataque, enquanto o segundo ainda não foi reivindicado, mas há fortes suspeitas de que o ISKP esteja por trás dele. O porta-voz do autoproclamado Estado Islâmico, Abu Hudhayfah Al-Ansari, declarou que estes ataques fazem parte da nova campanha global do grupo, intitulada “Matem-nos onde quer que os encontrem”, uma referência a um versículo da surata Al-Baqarah.[53]
Esta campanha inclui igualmente o atentado suicida de 13 de Outubro de 2023, que matou sete fiéis na mesquita xiita Imã Zaman, em Pul-e-Khumri, capital da província de Baghlan, no norte do Afeganistão, durante as orações de sexta-feira,[54] e o ataque de 29 de Abril de 2024 a uma mesquita xiita no distrito de Guzara, em Herat, que causou seis vítimas mortais. Ambos os ataques foram reivindicados pelo ISKP. [55]
O grupo é suspeito de estar na origem de dois outros ataques em 2024, embora não tenha reivindicado a responsabilidade por nenhum deles. A 20 de Abril de 2024, uma bomba detonou num carro no bairro de Kot-e-Sangi, em Cabul, matando o condutor e ferindo três pessoas.[56] Do mesmo modo, a 11 de Agosto de 2024, uma bomba explodiu num miniautocarro em Dasht-e-Barchi, causando um morto e 11 feridos.[57]
O ISKP também reivindicou a responsabilidade pelo ataque de 12 de Setembro de 2024 que envolveu a emboscada de aldeões das províncias de Ghor e Daykundi que foram saudar os peregrinos que regressavam de uma viagem religiosa a Karbala (Iraque), matando 14 pessoas e ferindo seis.[58]
Tal como no passado, a comunidade hazara continua a ser perseguida sob o domínio dos talibãs, que impõem inúmeras restrições aos fiéis xiitas. Uma das formas mais graves de discriminação são as expulsões forçadas.[59] Em meados de 2024, os talibãs ordenaram aos residentes hazaras de Nowabad, na cidade de Ghazni, que apresentassem os títulos de propriedade das suas terras, um processo que acabou por conduzir à sua deslocação. As autoridades alegaram que as terras eram propriedade do Estado e estavam ilegalmente ocupadas, apesar de os hazaras as terem adquirido legalmente.[60]
Além disso, desde o regresso dos talibãs ao poder, os hazaras têm sido sistematicamente afastados dos cargos governamentais, o que reduz significativamente o seu papel na governação e limita o seu acesso aos recursos.[61]
Em Fevereiro de 2023, as autoridades talibãs do distrito de Nusay, na província afegã de Badakhshan, emitiram um decreto proibindo os casamentos entre muçulmanos xiitas e muçulmanos sunitas. Esta decisão foi justificada por motivos religiosos e ideológicos.[62] Em Abril de 2023, as autoridades declararam o Eid Al-Fitr a 21 de Abril de 2023, apesar de esta data ser o último dia do Ramadão segundo o calendário xiita. Na província de Daikundi, os membros da comunidade xiita foram obrigados a quebrar o jejum nos postos de controlo da polícia e pelo menos 25 pessoas foram espancadas por se recusarem a fazê-lo.[63]
Em Julho de 2023, o Conselho de Académicos Xiitas do Afeganistão emitiu uma declaração em que instava as pessoas de luto a limitarem as suas actividades durante o Muharram, o primeiro mês do calendário islâmico. Esta orientação foi emitida em resposta às restrições impostas pelos talibãs. Antes do regresso dos talibãs ao poder, em Agosto de 2021, as comunidades xiitas afegãs podiam comemorar o Muharram livremente, organizando procissões em grande escala com cânticos e rituais religiosos. As limitações recentemente impostas suscitaram a oposição dos líderes xiitas, que as consideram uma infracção às suas práticas religiosas.[64]
Em Dezembro de 2023, o Ministério do Ensino Superior dos talibãs deu instruções às universidades privadas e às instituições de ensino superior para retirarem das suas bibliotecas os livros considerados "contraditórios com a jurisprudência hanafi, políticos ou que constituam um desafio à fé". Reforçando esta directiva, o ministro do Ensino Superior talibã, Neda Mohammad Nadim, declarou que "o Afeganistão não tem seitas" e que todo o país adere à jurisprudência hanafi.[65]
Posteriormente, em Junho de 2024, a Direcção de Educação talibã em Bamyan ordenou às escolas que retirassem os livros de jurisprudência Ja'fari dos seus currículos, declarando que seriam elaborados e distribuídos novos manuais que incorporassem as tradições sunita e xiita. No entanto, em Janeiro de 2025, esses materiais não tinham ainda sido introduzidos.[66]
Os muçulmanos sufis também foram visados durante o período em análise. Este grupo desempenhou durante séculos um importante papel espiritual no Afeganistão, mas actualmente a sua visão está em forte conflito com a dos talibãs e do ISKP. A 22 de Novembro de 2024, ocorreu um ataque mortal no santuário de Sayed Padshah Agha, no distrito de Nahrin, província de Baghlan. Homens armados não identificados abriram fogo contra uma reunião de fiéis sufis durante uma sessão nocturna de Zikr (oração devocional), matando pelo menos dez pessoas. O ISKP reivindicou a autoria do ataque.[67] Este ataque seguiu-se a três ataques brutais em 2022, que, no seu conjunto, causaram mais de uma centena de vítimas.[68]
A comunidade ahmadi enfrenta um destino igualmente terrível. Já perseguidos durante o anterior regime talibã, não são considerados verdadeiros muçulmanos e, por isso, são considerados blasfemos. Antes de Agosto de 2021, estimava-se que fossem cerca de 450 em todo o país, mas o seu número actual é desconhecido. Alguns ahmadis foram alegadamente detidos pelos talibãs, segundo informações do Gabinete de Imprensa Ahmadi. O Califa ahmadi Hazrat Mirza Masroor terá afirmado que: “Os muçulmanos ahmadi no Afeganistão estão a passar por dificuldades extremas e alguns foram mesmo detidos”.[69] Noutra declaração, afirmou: "Extremistas como os talibãs e outros estão a manchar o nome do Islão e já estão sob o domínio de Deus".[70]
O Cristianismo é visto como uma religião ocidental e estranha ao Afeganistão. Mesmo antes da tomada do poder pelos talibãs, os cristãos relataram como a opinião pública, nas redes sociais e noutros locais, era hostil aos convertidos ao Cristianismo. Os cristãos afegãos costumavam prestar culto sozinhos ou em pequenos grupos em casas particulares.[71] Depois de terem tomado o poder, os talibãs afirmaram que iriam proteger as minorias religiosas, mas não fizeram qualquer referência aos cristãos. O grupo declarou publicamente: "Não há cristãos no Afeganistão. Nunca foi conhecida nem oficialmente registada aqui uma minoria cristã".[72]
De acordo com alguns relatos, os talibãs colocaram recompensas aos cristãos afegãos, oferecendo prémios monetários aos indivíduos que os denunciem. Este desenvolvimento veio aumentar ainda mais os perigos enfrentados pelos cristãos, que já são obrigados a praticar a sua fé em segredo.[73] Pela primeira vez num século, o Afeganistão ficou sem a Igreja Católica quando os talibãs tomaram o controlo do país. O Padre Giovanni Scalese, sacerdote barnabita e superior da Missio sui iuris no Afeganistão – presente no país desde 1921 – foi obrigado a regressar a Itália a 26 de Agosto de 2021. Numa entrevista concedida em Maio de 2024, o Padre Scalese, que tinha sido o único sacerdote católico no Afeganistão durante sete anos, exprimiu a sua frustração pela falta de atenção global ao país, instando as organizações internacionais a retomarem os seus esforços de assistência aos necessitados.[74]
Uma grande preocupação para os cristãos afegãos que procuraram refúgio no Paquistão é o Plano de Repatriamento de Estrangeiros Ilegais, introduzido pelo governo paquistanês em Outubro de 2023. Esta política carece de protecções específicas para as minorias religiosas e visa especificamente os estrangeiros sem documentos, com especial incidência nos refugiados afegãos, colocando-os em sério risco de deportação.[75]
Em Julho de 2023, uma curta-metragem produzida pela Christian Solidarity Worldwide documentou a situação dos cristãos hazara no Paquistão, que são forçados a viver escondidos para evitar a deportação ou, nos piores casos, o linchamento devido à sua fé.[76]
A 7 de Agosto de 2024, o Papa Francisco encontrou-se com a Associação da Comunidade Afegã em Itália, manifestando a sua profunda dor pelo imenso sofrimento no Afeganistão. Condenou também a utilização abusiva da religião, afirmando que a fé nunca deve ser explorada para justificar o ódio ou a violência.[77]
De acordo com grupos da sociedade civil, cerca de 150 sikhs e hindus ainda viviam no país no final de 2021, contra 400 no início do ano e 1.300 em 2017.[78] Em 2022, apenas 100 hindus e sikhs terão permanecido no país.[79]
Mesmo antes da chegada ao poder do novo regime talibã, os templos sikh tinham sido alvo de ataques, muitas vezes reivindicados pelo ISKP, como o que ocorreu a 25 de Março de 2020 num gurdwara em Cabul, matando 25 pessoas.[80]
Em Outubro de 2023, o município de Cabul anunciou que os talibãs tinham nomeado um representante das comunidades hindu e sikh de Cabul para defender os seus direitos, nomeadamente no que se refere à recuperação de propriedades confiscadas.[81] Em Abril de 2024, um representante dos talibãs reiterou o compromisso do regime de proteger os direitos de propriedade dos Hindus e dos Siques.[82]
Apesar da aparente disponibilidade dos talibãs para facilitar o seu regresso, os Hindus e os Siques continuam a recear regressar ao Afeganistão, uma vez que, no passado, enfrentaram severas restrições sob o domínio dos talibãs, incluindo limitações à sua aparência e proibições de observar publicamente os seus feriados religiosos.[83]
Não se conhece nenhum judeu que tenha permanecido no Afeganistão. No final do séc. XX, quase toda a comunidade judaica tinha emigrado para Israel, devido ao agravamento das condições de segurança. Após a tomada do poder pelos talibãs, Zebulon Simentov, que se crê ser o último judeu que restava no país, optou inicialmente por ficar. No entanto, em Setembro de 2021 acabou por deixar Cabul, marcando o fim da presença judaica no Afeganistão.[84]
Não existem dados disponíveis sobre os bahá'ís no Afeganistão. A comunidade tem vivido em relativo anonimato, sobretudo após a declaração de 2007 da Direcção Geral de Fatwas e Contas do Supremo Tribunal do Afeganistão, que considerou a fé bahá'í blasfema e os seus seguidores infiéis.[85]
Os muçulmanos uigures, que são cerca de 2.000, são outro grupo em perigo. Dadas as estreitas relações dos talibãs com a China, que o novo regime descreveu como o seu "principal parceiro" na reconstrução do Afeganistão,[86] os Uigures temem agora pelas suas vidas no Afeganistão e por um possível repatriamento e perseguição na China.[87]
Perspectivas para a liberdade religiosa
Num contexto de isolamento quase total e com pouco recurso à lei, as minorias étnicas e religiosas no Afeganistão vivem um duplo sofrimento: discriminação e perseguição sistemáticas por parte dos talibãs e ataques violentos por parte do autoproclamado Estado Islâmico da Província de Khorasan (ISKP).
A escalada de violações dos direitos humanos cometidas pelas autoridades de facto do país, tal como é descrita no presente relatório – que não é exaustivo, dado o grande volume de incidentes –, traça um quadro extremamente negativo e alarmante da liberdade religiosa no Afeganistão.
Além disso, apesar das tentativas dos talibãs para conter o ISKP, as atrocidades cometidas pelo grupo jihadista não parecem ter diminuído. Pelo contrário, o ISKP adaptou a sua estratégia, passando do controlo territorial para a guerra urbana. Esta transformação inclui uma estrutura interna descentralizada e um sistema menos hierárquico, com o objectivo de minar a legitimidade dos talibãs aos olhos da população local.[88]
A combinação destes factores indica que as perspectivas para a liberdade religiosa no Afeganistão continuam a ser profundamente preocupantes e esmagadoramente negativas.
Fontes