Disposições legais em relação à liberdade religiosa e aplicação efectiva
O preâmbulo da Constituição[1] invoca a protecção de Deus como fonte de toda a razão e justiça. O artigo 2.º afirma que “o Governo federal apoia a fé católica”. De acordo com o artigo 14.º da Constituição, todos os habitantes podem professar livremente as suas crenças.
Ao tomar posse, "o Presidente e o Vice-Presidente prestarão um juramento, coerente com as suas crenças religiosas" (artigo 94.º).
O artigo 73.º estabelece que “os membros do clero não podem ser deputados no Congresso”.
Foram apresentados projectos de lei sobre a liberdade religiosa em 2021[2], 2022[3] e novamente no período em análise. Houve também tentativas de revogar ou alargar o âmbito da Lei n.º 21.745, que diz respeito ao registo de grupos religiosos. Nos últimos 30 anos, foram apresentadas várias propostas legislativas semelhantes.
A lei proíbe todas as formas de discriminação contra os trabalhadores, incluindo por motivos religiosos (artigo 17.º), e as entidades patronais não podem questionar os trabalhadores sobre as suas opiniões religiosas (artigo 73.º).[4]
Segundo a alínea b) do artigo 126.º da Lei da Educação, a liberdade de consciência dos alunos deve ser respeitada. A alínea c) do artigo 128.º concede aos pais o direito de terem em conta as suas crenças religiosas quando escolhem as escolas e universidades para os seus filhos.[5]
O n.º 4 do artigo 80.º do Código Penal argentino pune os homicídios por motivos religiosos com prisão perpétua. De acordo com a alínea b) do artigo 119.º, em casos de abuso sexual, ser membro do clero é uma circunstância agravante.[6]
Quanto a denominações religiosas, a Argentina reconhece a Igreja Católica e as suas actividades no país ao abrigo de um acordo que assinou com a Santa Sé em 1966.[7] Este acordo foi ratificado pelo Congresso Nacional Argentino, que, nos termos do n.º 22 do artigo 75.º, tem o poder constitucional de "aprovar ou rejeitar tratados celebrados com outras nações e com organizações internacionais, e concordatas com a Santa Sé". Existe também um acordo sobre jurisdição militar e assistência religiosa pastoral nas Forças Armadas.[8]
O Estado pagava os salários e as prestações de alguns membros do clero católico,[9] mas, em 2018, a Conferência Episcopal Argentina decidiu prescindir gradualmente do financiamento público. Esta decisão faz parte de um acordo com o Governo, em resposta aos apelos à separação total entre a Igreja Católica e o Estado.[10] Todas as contribuições terminaram a 31 de Dezembro de 2023.[11]
A alínea c) do artigo 146.º do Código Civil e Comercial da Argentina especifica que a Igreja Católica é uma pessoa colectiva.[12] O artigo 147.º observa que a Igreja é governada pelas suas próprias estruturas jurídicas.[13] Outras Igrejas, confissões ou entidades religiosas são, de acordo com a alínea e) do artigo 148.º, pessoas colectivas privadas, regidas pelos seus próprios regulamentos, bem como pelo Código Civil e Comercial e pelos seus próprios estatutos.[14]
Todas as organizações religiosas, excepto a Igreja Católica porque já é reconhecida ao abrigo da Concordata, devem registar-se no Registo Nacional de Religiões para obterem o reconhecimento legal.[15]
Alguns dias santos católicos são feriados oficiais. As pessoas que professam outras religiões, como o Judaísmo ou o Islamismo, têm os seus próprios dias santos reconhecidos como dias em que não trabalham.[16]
Qualquer ministro de uma religião reconhecida tem o direito e o dever de não revelar informações obtidas devido ao seu estatuto religioso se estiver envolvido em processos legais (artigo 244.º).[17]
A Lei n.º 27.678 sobre os cuidados paliativos foi aprovada em Julho de 2022. Inclui a satisfação das necessidades espirituais dos pacientes.[18]
Na província de Neuquén foi apresentado um projecto de lei para garantir aos membros da polícia o direito de professar livremente a sua religião e obter assistência espiritual.[19]
A província de Buenos Aires apresentou um "Projecto de lei sobre a educação pública sem interferência religiosa"[20] para garantir uma educação "laica" em todas as escolas públicas e privadas, incluindo a proibição de práticas e ritos religiosos nas instalações da escola e a utilização de símbolos religiosos.
Incidentes e episódios relevantes
Em Março de 2023, a Universidade de Cuyo, em Mendoza, realizou uma exposição fotográfica, descrita como blasfema por alguns líderes cristãos, que causou "dor, desconforto, perplexidade e rejeição" e "ofensa aos sentimentos religiosos".[21]
Da mesma forma, em Maio de 2023, o Museu de Belas Artes de Buenos Aires acolheu uma exposição com a escultura La civilización occidental y cristiana, uma escultura provocativa do artista argentino León Ferrari que anteriormente tinha sido alvo de críticas por parte do Arcebispo Jorge Bergoglio.[22] A obra retrata Cristo crucificado num avião de guerra dos EUA. Criada em 1965 em resposta à guerra do Vietname, a obra provocou uma intensa controvérsia durante uma exposição em Buenos Aires em 2004, quando Bergoglio a denunciou como "uma blasfémia que envergonha a nossa cidade".[23]
Os tribunais provinciais também se pronunciaram sobre questões relacionadas com a liberdade religiosa. Em Mendoza, um complexo turístico foi condenado a pagar uma indemnização a uma jovem muçulmana que não tinha sido autorizada a nadar usando um burkini.[24] Em Córdova, foi concedido a uma mulher o direito de rezar numa mesquita na mesma sala que os homens, como já tinha feito anteriormente com um outro xeque.[25]
O Conselho Argentino para a Liberdade Religiosa (CALIR) já tinha manifestado a sua preocupação com a proliferação de decretos municipais que estabelecem restrições aos locais de culto e a necessidade de registos religiosos.[26] Isso tornou-se evidente no período em análise. Em 2023, o Governo provincial de La Pampa criou um Registo Provincial de Entidades Religiosas e Ministros do Culto[27] e registou seis novas igrejas numa cerimónia que destacou os seus contributos sociais e espirituais.[28] Na província de Mendoza, o Governo aprovou uma portaria que regulamenta os "templos de fé", criando a Direcção Municipal Religiosa com poderes para manter um registo dos locais de culto.[29] O mesmo processo está pendente em Puerto Madryn, província de Chubut.[30]
Em Março de 2023, durante a reunião anual da Comissão Episcopal para a Pastoral Indígena, as comunidades indígenas e os representantes da Igreja denunciaram injustiças históricas e actuais. Estas incluíam a tomada violenta de terras ancestrais, a supressão da identidade cultural e espiritual e a marginalização sistémica por parte de sucessivos governos. Os participantes criticaram o Governo por não ter cumprido repetidamente os seus compromissos, tais como o reconhecimento dos direitos à terra, a garantia de protecção jurídica e a incorporação das vozes indígenas nos processos de tomada de decisão. As comunidades indígenas instaram o Estado a tomar medidas concretas em conformidade com os quadros jurídicos nacionais e internacionais que protegem os direitos indígenas.[31]
No mesmo mês, o Ministério da Justiça organizou um debate com mulheres muçulmanas para assinalar o Dia Internacional de Combate à Islamofobia.[32]
Em Março de 2023, o Conselho para a Educação Católica (CONSUDEC) e a Federação das Associações Religiosas Educativas da Argentina (FAERA) manifestaram a sua preocupação quanto à viabilidade financeira das escolas católicas na sequência de recentes decisões governamentais. Em grande parte dependentes de subsídios estatais e de propinas, as escolas enfrentam um défice de financiamento criado por um aumento obrigatório de 66% dos salários dos professores, enquanto os aumentos das propinas estão limitados a apenas 16,8%. Com 80-85% das despesas das escolas afectas aos salários, este desequilíbrio ameaça a sua sustentabilidade.[33]
Em Abril de 2023, o Supremo Tribunal decidiu contra o pedido de uma pessoa para alterar o sexo na sua certidão de baptismo, observando que o registo dos sacramentos é da competência da Igreja Católica e está fora do âmbito do Estado.[34]
Em Junho de 2023, a Paróquia da Santa Eucaristia em Buenos Aires foi profanada e o seu ostensório com a Sagrada Eucaristia foi roubado.[35] Um incidente semelhante foi registado na Paróquia da Sagrada Família em Julho de 2023.[36]
Em Junho de 2023, o Congresso aprovou a Lei n.º 27.744, declarando o dia 18 de Julho como dia de luto nacional em memória do ataque de 1994 à Associação Mutual Israelita Argentina (AMIA).[37] Em Abril de 2024, aprovou a Lei n.º 27.741, tornando o dia 31 de Outubro no Dia Nacional das Igrejas Evangélicas e Protestantes.[38] Actualmente, estima-se que existam seis milhões de evangélicos na Argentina, o que representa 15% da população. Em Agosto de 2024, a Província de Neuquén instituiu o Dia Provincial do Pastor Evangélico, que será celebrado todos os anos a 22 de Setembro em reconhecimento do trabalho dos ministros evangélicos.[39]
Em Junho de 2023, o Ministério dos Negócios Estrangeiros nomeou um Representante Especial para a Luta contra o Anti-semitismo, que está encarregue de iniciativas preventivas a nível nacional e internacional, incluindo a participação em fóruns.[40]
A 18 de Julho de 2023, a Argentina lançou um programa nacional chamado "MenstruAR" para promover o acesso equitativo à saúde menstrual. Desenvolvida pela Direcção Nacional de Políticas Integrais de Igualdade, a iniciativa está alinhada com a declaração conjunta das Nações Unidas de 8 de Março de 2019, que instou os estados a desmantelar os tabus em torno da menstruação. A declaração constatou que, em alguns países, as mulheres e raparigas menstruadas são consideradas impuras e são impedidas de participar em cerimónias religiosas ou culturais ou de entrar em locais de culto.[41]
A 18 de Setembro de 2023, o Secretariado do Culto, que faz parte do Ministério das Relações Exteriores, e o Instituto para o Diálogo Global e a Cultura do Encontro lançaram o Programa Internacional da Esperança. A iniciativa visa promover acções colaborativas e o diálogo entre os sectores social, cultural, comunitário, político e religioso, com o objectivo de construir um futuro mais justo, inclusivo, equitativo e sustentável. A iniciativa promove a esperança como catalisadora do progresso social e busca estabelecer uma rede de cooperação baseada no respeito mútuo, no cuidado com a “casa comum” e na protecção dos direitos humanos.[42]
Nesse mesmo ano foram realizadas celebrações para marcar o 180.º aniversário da Igreja Evangélica Alemã na Argentina, com a participação de clérigos de várias denominações.[43]
Em 2023, durante a sua campanha para a reeleição, o presidente da Câmara de La Matanza, Fernando Espinoza, lançou um vídeo promocional com uma imagem da Virgem de Luján acompanhada do logótipo municipal e da palavra “FE” (fé), um termo que faz referência tanto à crença religiosa como às próprias iniciais do seu nome. No vídeo, Espinoza conta a sua devoção pessoal e a sua ligação familiar à Virgem, o que suscitou críticas pela utilização de simbolismo religioso em mensagens políticas.[44]
A Argentina continua a destacar-se pelo seu diálogo inter-religioso. Em 2023, líderes religiosos, senadores e funcionários participaram num evento intitulado “Diálogo global para promover a tolerância, a paz e o respeito pela liberdade de crença”. O objectivo era sensibilizar para a discriminação religiosa e destacar o aumento alarmante da intolerância e da violência, muitas vezes alimentadas pela islamofobia, pelo anti-semitismo e pelo sentimento anticristão.[45]
Em Janeiro de 2024, o Tribunal de Apelação Civil de Buenos Aires deu provimento a um recurso interposto por uma menina judia de 12 anos, permitindo-lhe viajar para Israel para celebrar o seu bat mitzvah com a família. A decisão sublinhou a primazia do superior interesse da criança e o seu direito à liberdade religiosa, tendo em conta a sua origem judaica ortodoxa e o significado cultural do evento. Um tribunal inferior tinha inicialmente recusado o pedido, invocando preocupações de segurança devido ao conflito em curso no Médio Oriente. O tribunal de recurso anulou essa decisão, afirmando a importância do seu desenvolvimento religioso e cultural e salientando que tinham sido tomadas medidas de segurança suficientes.[46]
A Delegação das Associações Judaicas Argentinas (DAIA) destacou um aumento acentuado nos incidentes anti-semitas em 2023. Os casos aumentaram 44% em comparação com 2022, com 57% ocorrendo nos três meses seguintes ao ataque do Hamas a Israel a 7 de Outubro de 2023.[47] A tendência intensificou-se em Janeiro de 2024, quando mais de 100 incidentes foram documentados, representando um aumento de 600% em relação a Janeiro de 2023.[48]
Em Fevereiro de 2024, o Governo anunciou a sua intenção de dissolver o Instituto Nacional contra a Discriminação, a Xenofobia e o Racismo (INADI), um organismo fundado em 1995, em parte para apoiar as vítimas, incluindo as das comunidades religiosas.[49] Justificou a decisão como fazendo parte dos esforços de racionalização da administração pública. Apesar das fortes críticas de organizações de defesa dos direitos humanos e de grupos como a Delegação das Associações Israelitas na Argentina (DAIA),[50] o instituto foi oficialmente extinto em Agosto de 2024 através do Decreto n.º 696/2024, tendo as suas funções sido transferidas para o Ministério da Justiça.[51]
Em Março de 2024, um grupo de manifestantes que participava no Dia Internacional da Mulher vandalizou uma igreja evangélica em Luján.[52] A Aliança Cristã de Igrejas Evangélicas da República Argentina (ACIERA) emitiu uma declaração condenando o incidente. A Red Respeto Religioso – uma rede fundada em 2021 por leigos católicos para defender a fé contra ofensas públicas – expressou solidariedade com a comunidade evangélica, apelando à justiça e à responsabilização.[53]
Em Abril de 2024, um juiz de Salta declarou o Arcebispo Mario Cargnello, o Bispo Emérito Martín de Elizalde, o Vigário Judicial Loyola Pinto y de Sancristóval e o Padre Lucio Ajalla culpados de "violência de género" contra as Irmãs Carmelitas Descalças do histórico Convento de San Bernardo. A decisão judicial identificou várias formas de abuso – religioso, psicológico, físico (mas não sexual) e económico – praticadas ao longo de duas décadas, incluindo a interferência nos assuntos internos do convento e comportamentos abusivos durante o velório da abadessa. As tensões entre as Carmelitas Descalças de Salta e o Arcebispo Mario Cargnello aumentaram nos últimos anos, em grande parte devido ao apoio das religiosas à devoção mariana não aprovada da "Virgen del Cerro". O Arcebispo Cargnello tem-se recusado sistematicamente a reconhecer as alegadas aparições relatadas pela vidente María Livia Galiano de Obeid e não autorizou a celebração de Missas no santuário associado.[54] Em 2022, a Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica do Vaticano reafirmaram a autoridade do bispo diocesano, instruindo as religiosas a aderirem estritamente à vida monástica e a absterem-se de se envolverem em actividades apostólicas não autorizadas.[55]
Em Junho de 2024, um tribunal de La Matanza decidiu que um rapaz de 11 anos, elegível para adopção depois de ter sido afastado da sua família devido a violência, deveria ser colocado numa nova família que respeitasse a sua identidade judaica. Ele tinha manifestado uma clara preferência por ser adoptado por uma família judia, embora não necessariamente ortodoxa. O juiz sublinhou que a protecção da sua identidade religiosa era do seu superior interesse e que, na tradição judaica, a adopção no seio da fé ajuda a preservar a identidade, a continuidade da comunidade e os valores religiosos.[56]
Em Outubro de 2024, graffiti anti-semitas apareceram num monumento no Parque Rivadavia, em Buenos Aires. As autoridades responderam com uma investigação e protecção especial para instituições judaicas perante o aumento da violência.[57]
Em Tucumán, uma petição apresentada em Outubro por um grupo de advogados para remover uma imagem da Virgen del Valle do salão da Ordem dos Advogados foi rejeitada.[58]
A 30 de Novembro de 2024, a Paróquia da Natividade do Senhor, no bairro de Rucci, na cidade de Rosário, em Santa Fé, foi atacada com um cocktail molotov que danificou um pavimento, uma vedação e uma parede da capela. Foi encontrada uma nota exigindo a libertação de Marcelo "Frentudo" Fernández, um conhecido criminoso que tinha sido recentemente detido no âmbito de uma investigação sobre tráfico de droga.[59]
A 25 de Novembro de 2024, o Governo celebrou o Dia da Liberdade Religiosa, destacando "a exemplar convivência e diálogo entre as diferentes religiões, que é dever do Estado promover".[60] O Conselho Argentino para a Liberdade Religiosa (CALIR) fez o mesmo.[61]
Em 2024, a Comunidade de Santo Egídio e a Comissão para o Ecumenismo e o Diálogo Inter-religioso da Arquidiocese de Buenos Aires organizaram um encontro de oração pela paz.[62] Foi produzida uma nova edição de "A Noite dos Templos"[63], dando aos participantes a oportunidade de visitarem locais de culto que incorporam a diversidade religiosa.[64]
Durante o período abrangido por este relatório, a Igreja Católica manteve-se activa nos debates sociais. Na Semana Social de 2023, a Comissão Episcopal da Pastoral Social apelou a uma "maior escuta, memória e reforço da democracia".[65] Em Junho de 2024, a Cáritas Argentina divulgou o seu relatório sobre a pobreza.[66] Em Dezembro de 2024, a Conferência Episcopal Católica escreveu ao presidente da República recém-eleito, manifestando a sua disponibilidade para o diálogo e a cooperação,[67] uma oferta que foi bem recebida.[68]
Perspectivas para a liberdade religiosa
No período em análise, surgiram duas tendências positivas na Argentina, nomeadamente uma diminuição dos incidentes violentos motivados pela intolerância religiosa e um relançamento do diálogo inter-religioso, tradicionalmente frutuoso, no país. Com o levantamento das últimas restrições impostas durante a pandemia de COVID-19, as relações entre a Igreja e o Estado melhoraram significativamente.
Durante o período em análise, os tribunais argentinos também emitiram várias decisões que protegem melhor a liberdade religiosa. As perspectivas para a liberdade religiosa são positivas.
Fontes